AVENIDA JOHN BEARE

No dia 11 de Abril de 1714, D. João V (1689-1750), mandou redigir um alvará contratando João Parada, também identificado como Joam Palada, cidadão italiano experimentado na indústria dos vidros, para que procedesse à instalação e posterior Administração da Fábrica de Vidros do Forte da Junqueira, em Lisboa.

O país estava a ser invadido por vidro de todas as espécies, oriundo de Itália e de França, sendo absolutamente necessário que esses produtos fossem fabricados no reino de modo a terminar a dispendiosa importação.

Só quando esta fábrica estava na fase final da construção, se chegou à conclusão de que não seria viável pô-la a trabalhar. As lenhas necessárias à laboração da fábrica estavam na mata do Ribatejo, do outro lado do rio, e nas imediações da fábrica o casario crescia demasiado.

No ano seguinte, em 1715, D. João V ordena que a fábrica fosse transferida para o lugar de Coina, nas Terras D'Além, onde as areias eram de boa qualidade, o combustível era farto e a "salsola kali" se criava bem.

A instalação da fábrica nestas terras começou em 1719 para os fornos se acenderem entre 1721 e 1723. Coina vivia praticamente dos bens retirados da floresta de pinheiro bravo que a cercava, com serrarias preparando as madeiras para a construção naval e a lenha para o aquecimento e cozinhas de Lisboa. Nas imediações, dispunha de um porto ribeirinho onde embarcava esses produtos, fundo de sustento para o povo.

A chegada da Real Fábrica dos Vidros criou as condições ideais para se dar um grande desenvolvimento na economia local e uma grande expectativa para o futuro da população da vila. Tratava-se de uma nova indústria criadora de muitos empregos e isso animava a população.

Joam Palada, transferido para Coina, iniciou a laboração, mas ao contrário das previsões, o insucesso financeiro começou cedo a verificar-se, obrigando D. João V a ordenar que se fizesse a substituição do italiano pelo inglês Joan Butler, contratado por doze anos.

As convicções mais otimistas levaram D. João V, após a chegada de Butler, a acreditar que a produção dos vidros a partir desse momento, passaria a ser de melhor qualidade e maior quantidade, decidindo que se ordenasse a proibição, de imediato, da importação dessas mercadorias. Porém, a administração de Butler acabou por ser tão ruinosa como a anterior, conduzindo a fábrica à beira da falência, para desalento do Rei.

Mais uma vez o administrador era substituído, desta vez por Miguel Kelly como responsável pela produção de vidraça, vidros para espelhos e vidro verde, enquanto Butler, despojado de grande parte das anteriores responsabilidades, toma à sua guarda a produção de vidro branco.

Mas os péssimos resultados económicos continuam a marcar a fatura dos vidros e o próprio Rei, no dia 1 de Fevereiro de 1736, já impaciente, ordena que se terminem os contratos com Kelly e Butler, mesmo antes do seu termo.

Um ano após esse desaire, a 10 de Fevereiro de 1737, desenvolve-se nova tentativa para reabilitar a Real Fábrica de Vidros de Coina, tendo sido contratado Joan Ponts ou Poutz, provavelmente catalão, com o encargo de prosseguir a administração e assim estabelecer de novo a laboração manufatureira que tinha sido interrompida no ano anterior. De nada valeu esta modificação na administração da fábrica, continuando os resultados financeiros a ser terrivelmente desastrosos, obrigando Pontz a retirar-se em 1741.

Butler, que continuou a acompanhar de perto o desenrolar dos acontecimentos, desgostoso e humilhado e em desespero suicida-se.

John Beare cidadão irlandês, provavelmente estanqueiro de vidros em Lisboa. com negócios com a Real Fábrica de Coina, vendo os seus interesses em perigo, apresenta um plano e é nomeado administrador, em 20 de Fevereiro desse mesmo ano de 1741, conseguindo levar a manufatura até 1747.

Beare, apesar das precárias condições em que encontrou a Fábrica, tardou demasiado tempo a reordenar todo o sistema e só em 1744 conseguiu condições para laborar em pleno. Já se movimentavam, por essa altura, várias oposições à existência da Real Fábrica, muito especialmente pelo Conselho da Fazenda, onde Beare fazia inglórios esforços para convencer os Conselheiros de que ainda tinha algumas possibilidades de reabilitar economicamente a vidreira.

Já nessa altura a carência de lenhas no Pinhal do Ribatejo o obrigava a importar vários navios de carvão de Inglaterra, suportando os graves inconvenientes dos normais naufrágios durante as carreiras. Por outro lado, o vidro produzido era de inferior qualidade ficando mais esverdeado, ao usar o carvão como combustível.

John Beare, homem inteligente, percebeu perfeitamente o que iria acontecer. Foi, entretanto, ele próprio quem fundamentou, em 1744, através da "Declaração sobre o descalabro da Fábrica de Coina" a necessidade de transferência dessa Fábrica denunciando, ao mesmo tempo, pormenorizadamente, as suas dificuldades técnicas, os vários problemas do fabrico, as sabotagens a que era sujeito com frequência, os graves conflitos entre os trabalhadores e o descontrolo financeiro.

Enquanto não era tomada uma decisão quanto à sua "Declaração", John Beare continuou a produzir vidros em Coina, chegando mesmo a nomear Manuel Gomes, em 3 de Maio de 1745, como seu estanqueiro para Coimbra.

Mas a situação estava cada vez mais degradada e a 13 de Outubro 1746, os representantes do povo, apresentam uma documentada reclamação ao Senado da Câmara de Lisboa, ao Juiz do Povo e à Casa dos Vinte e Quatro, pedindo que a Real Fábrica de Coina fosse mudada para outro local, pois consumia toda as lenhas disponíveis na Banda d'Além, principal abastecedor da cidade de Lisboa.

Esta denúncia adicionada à degradada situação financeira, iria determinar o futuro da fábrica que iria iniciar a sua transferência em 1747. Esta medida culminou com a retirada, no ano seguinte e por ordem de D. João V, de todos os privilégios Reais, encerrando desta forma a história da Real Fábrica de Vidros de Coina.

A decisão da transferência da fábrica para a Marinha Grande deve-se às inegáveis condições que a região oferecia em termos de matérias-primas, como de combustível. Bem perto encontravam-se as melhores areias, os melhores barros para a feitura dos potes, muita lenha e fartura de "barrilha".

Há algumas divergências quanto à data verdadeira da instalação da Real Fábrica de Vidros de John Beare na Marinha Grande. Porém essa divergência não tem qualquer importância, porquanto todos os historiadores que se debruçam seriamente sobre estes acontecimentos, situam a sua opinião entre os anos de 1747 e 1749.

O ano de 1747 é sempre referido como o ano do descalabro final da Fábrica de Coina e 1749 como o ano da entrada da produção em pleno da fábrica da Marinha Grande. Subentende-se, deste modo, ser correto que o ano de 1748 teria sido o do início da laboração.

Gustavo de Matos Sequeira (1880-1962), ao prefaciar o catálogo da Companhia Industrial Portuguesa, dizia que a Real Fábrica de Coina tinha entrado em decadência no século XVII. Ora acontece que dentro desse período se estava pelo menos a 19 anos da sua fundação. Não chegaria a ser polémico este erro, porque é o próprio académico que, em artigo publicado posteriormente no Jornal "O Século", reconhece ter-se enganado, situando o descalabro final em 1747, a que se seguiu a transferência da fábrica para a Marinha Grande.

O documento mais evidente que confirma com correção a chegada de Beare à Marinha Grande é o "Dicionário Geográfico", notável manuscrito transmitido a D. José I em 31 de Março de 1758, dando conta do estado do país após o terramoto de 1755.

Nesse documento e em relação à vila de Coina e à freguesia da Marinha de Nossa Senhora do Rosário, pode ler-se:

Volume 11, Folhas 2416 (Vila de Coina):

"Há dentro desta vila e freguesia uma fábrica real que foi de vidros, a qual se acha danificada e sem exercicio há des annos a esta parte por se mudar a mesma paro o lugar da Marinha, termos da cidade de Leyria, e por este dezamparo se lhe perdem as madeiras que sam excellentes."

Cronologicamente, podemos situar com segurança a instalação da primeira fábrica de vidros na Marinha Grande, no ano de 1748, pela mão John Beare, reservando as margens já atrás indicadas, que vão de 1747 para a instalação e 1749 para o funcionamento em pleno.

Logo depois, em 23 de Agosto de 1749. é proclamada uma Resolução Real para que fosse fechada a Fábrica de Vidros da Marinha Grande, administrada por Beare, por força dos grandes estragos causados ao Pinhal de Leiria, apesar da autorização contratual permitir retirar dali doze mil carradas de lenha por ano.

Este documento remete definitivamente o início de laboração da fábrica para 1748. Repetia-se assim o mais grave problema que se opôs à continuação da fábrica em Coina, o consumo descontrolado de lenhas.

Iniciava-se também aqui uma aparente perseguição à manutenção da fábrica, como adiante se verá, que colidia com os privilégios concedidos ao povo que estava autorizado a retirar trinta mil carradas de lenha por ano da Mata, e também com os privilégios dos carreiros e, principalmente, da administração do Pinhal de Leiria que via, com a presença da fábrica, reduzidos os seus interesses com a venda normal de lenha.

Esta resolução real, por ser correta a sua data, poderá fazer crer ou parecer que a data de instalação da fábrica do irlandês na Marinha Grande seria anterior a 1748 pois, aparentemente, não seria possível, em tão curto período de tempo causar tão graves danos na floresta e torná-los tão evidentes. Mas não é o caso, como mais à frente veremos.

Em 22 de Outubro de 1754, tendo continuado a fábrica em laboração apesar da grande oposição, ordenou-se que fosse ouvido o Procurador Fiscal do Pinhal de Leiria, por decreto mandado publicar por Sua Majestade D. José I (1750-1777).

A questão era saber-se sobre os verdadeiros prejuízos causados pela instalação da Real Fábrica de Vidros e ao mesmo tempo, conhecer-se por que razão a resolução Real de 23 de Agosto de 1749 (tinham-se passado cinco anos) não estava a ser cumprida, pois a fábrica continuava em plena laboração, depois de ter sido ordenada a sua paragem.

Beare é, por isso, intimado a apresentar a prova de autorização de laboração durante esses cinco anos e tudo o que se pode deduzir, é que o irlandês, administrador da fábrica, teria subornado o escrivão Salvador Costa, para que este lhe passasse o documento ilibatório. Mas de nada lhe valeu.

Foram então encarregados de elaborar um relatório pormenorizado sobre a eventual destruição do Pinhal de Leiria por intervenção da Fábrica de Vidros, o Juiz do Tombo, José Gregório Ribeiro, e João António de Oliveira.

Esse relatório acaba por aconselhar o encerramento definitivo da fábrica, com os seguintes fundamentos, entre outros:

"...porque se alguma das medidas apontadas se praticarem por algum tempo não hande conservar-se porque as inteligências dos estrangeiros e a qualidade das pessoas que costumão destruir as ditas cautelas as farão inuteis e não tinha por mais útil à Fazenda Real, e ao público a conservação de tal fábrica do que a consistência e aumento do pinhal."

"Que não lhe parecia posta em razão que o Guarda Mor quisesse comparar os fabricantes dos vidros com os moradores de Leiria, aqueles eram estrangeiros e extrahião as lenhas para uma fabrica particular e com excesso e estes extrahião as lenhas para seus usos indispensáveis, eram nacionais e acudiam ao fogo quando se acendia no pinhal."

Termina este relatório recomendando a extinção da fábrica, cujo alvará seria assinado em 9 de Setembro de 1762, o que prova, pelo menos, a sua laboração até esta data.

Não é difícil concluir, através desse relatório que John Beare teria sido vítima de uma perseguição ou embaraçosa denúncia, logo iniciada em 23 de Agosto de 1749 e movida pelo Guarda Mor do Pinhal de Leiria e pelos carreiros que pretendiam ver reduzida a concorrência no consumo de lenhas, produzida pela fábrica.

Com o encerramento da primeira fábrica de vidros, provavelmente em 1762, encerra-se também o primeiro capítulo da atividade industrial vidreira da Marinha Grande.

John Beare, sem bens nem dinheiro, completamente arruinado, volta para o seu país em 1767, não se sabendo mais dele.

Assim, até 19 de Outubro de 1769, data do início da laboração da nova fábrica, agora administrada por Guilherme Stephens, nada mais se soube da manufatura de John Beare a não ser que foi encontrada em grande ruína.

Nesse mesmo ano de 1769, a 23 de Agosto, Stephens celebra a escritura de compra aos irmãos Reverendo Doutor José da Silva e Souza e Padre Fernando da Silva e Souza e a um cunhado de ambos, José António dos Santos, das várias propriedades necessárias à instalação da nova fábrica, entre elas as terras do Casal de Malta e :

"..... as terras de arneiro a honde se acha situada a fábrica velha de vidros e suas oficinas e mais pátios há onde se costuma por as lenhas para a mesma fábrica por onde se entra para ela, tapadas com muros que mandou fazer John Beare".

A propriedade identificada mais tarde por "Cerca".

Texto de Gabriel Roldão


Create your website for free! This website was made with Webnode. Create your own for free today! Get started